Furyo

Utopias possíveis

EM ANDAMENTO

“O sopro, conta o mito de origem, foi o instante preciso em que nos tornamos humanos. O que era apenas matéria desprovida de qualquer significação, moldada aos desígnios de um criador à sua imagem e semelhança, foi preenchida de vida e de sentidos. Porém, involucrados e impregnados dessa humanidade, não nos foi mais possível desnudar-nos, o corpo assim se pôs a transformar-se incessantemente, tornando-se espectro e representação de si e de outrem, em uma espécie de maldição. Como corpos estranhos, nos coube regressar à matéria-prima criadora, desvencilharmos da pele em que habitamos e traçar novos diálogos a partir da plenitude de uma nudez transfigurada, que brota de sua própria vontade e se impõe pelas suas imperfeições e incertezas. Uma nudez cheia de contradições e irracionalidades. Corpos subjetivos em meio ao caos do princípio eterno”. Alessandro Celante

Furyo - 不慮」- Imprevisto, inesperado, repentino, acidental, fortuito, casual, refugo


Descrição conceitual

Furyo - utopias possíveis, é um projeto que vem sendo desenvolvido junto ao CDF - Centro de fotografia de Montevidéu, em um módulo intitulado “MUFF caminos conjuntos” e supervisionado por artistas e educadores latino-americanos como Alexandre Sequeira (BR), Andea Josh (CL), Gisela Volá (AR), Valentina Montero (CL), Maya Goded (MX) e Luis Camnmitzer (UR) em uma proposta de desenvolvimento conjunto com ênfase nos processos individuais de criação apresentados por cada artista. Esse projeto nasce de uma obsessão que carrego desde a infância e que de certa forma me assombra até hoje, e fomenta outros questionamentos que se transformaram em projetos, que é a impossibilidade de vermos nossos próprios rostos sem que façamos uso de algum artifício mediador, quer seja por reflexo, por projeção ou por registro. Essa obsessão se manifesta nas áreas nebulosas entre o universo dito real e o universo das representações; mais que isso, potencializa a necessidade que tenho de construir narrativas visuais que partam de contradições, possibilitem diálogos entre diferentes linguagens e proponha experiências sensoriais em suas construções e exibições. Furyo, uma palavra japonesa que significa algo inesperado, imprevisto, acidental e que de forma pejorativa designa algo marginal, contraposta ao mito de origem judaico-cristão que prega a imagem e semelhança de um Deus criador, o que pressupõe a perfeição; baseando-se nesse mito, fomos concebidos originalmente como representações, ou seja, somos e sempre fomos imagens. Isto posto, ao pensar que a fotografia não se restringe à bidimensionalidade de suas representações, mas que ela começa em algum ponto aquém do ato fotográfico, perpassa pelos entrelaçamentos com os espaços perceptivos, pela historicidade intrínseca, pelas possibilidades dos processos técnicos e estende-se para além de sua exposição, é pensar naturalmente em uma fotografia expandida e como tal, com significantes intrínsecos ao seu processo, necessariamente transgressores à sua própria gênese enquanto fotografia convencional. Assim, posso pensar a fotografia como uma reinvenção contínua do seu próprio processo. O que então dizer então sobre o corpo? Onde começa e onde termina um corpo? Quantas são as camadas que compõem um corpo? Quantas narrativas pode um corpo suportar diante do peso histórico, da culpabilidade inerente ou das punições impostas na construção de um imaginário coletivo? Seria um corpo um processo de reinvenção contínua como a fotografia? A intenção aqui não é objetivar qualquer tipo de resposta a essas perguntas, mas de gerar reflexões e mais questionamentos a partir de um paralelo entre o corpo e a fotografia fora das esferas convencionais e dentro de um universo subjetivo e sensível, desnudando-os através de experiências estéticas e proporcionando conexões pelo contato dos corpos com uma matéria orgânica dentro de um a set fotográfico.

Se não conseguimos nos desvencilhar da pele cultural em que habitamos, é certo afirmar que apenas tirando as roupas não é o suficiente para estarmos completamente nus, então como propor uma nudez plena. E por que fazê-lo? Na pintura de Duchamp, diz Robert Lebel, “o nu representa o mesmo papel que os antigos esfolados nos livros de anatomia: É um objeto de investigação interna”. Assim, para vislumbrar um estado de utopia pela plenitude de uma nudez, não se faz retirando, mas pela aplicação da matéria-prima da criação em um auto processo de “auto desescultura”. Para tal, um ritual, uma performance, uma experiência sensorial no ato fotográfico onde a matéria orgânica da criação é o único refúgio do fotografado para estabelecer conexões outrora improváveis, assim o papel da experiência é de ativação sensorial e os resultados estão entrelaçados desde um universo do imaginário coletivo quanto aos referentes individuais de cada participante. São copos que se subjetivam, corpos que se desterritorializam, corpos que se esvaziam e estabelecem conexões das mais inesperadas a partir de uma matéria orgânica que os envolve e os desperta em uma escuridão ancestral, corpos dissidentes que se “desesculpem”, ou tão somente corpos distópicos que gozam de uma nudez plena, despertados para um estado em que as utopias são possíveis.

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